'Lulu' enfim ganha o palco do jeito em que veio ao mundo
Daniel Schenker, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Desde que despontaram no panorama teatral com Rua Cordelier – Tempo e morte de Jean-Paul Marat e A bao a qu – Um lance de dados, os integrantes da Cia. dos Atores assumiram a postura de autores, envolvidos não “apenas” com a criação de personagens mas também com a construção dos próprios espetáculos. Apropriaram-se dos universos de autores como William Shakespeare (no elogiado Ensaio.Hamlet), Jean Tardieu (no divertido Só eles o sabem) e Oswald de Andrade (no arriscado A morta e no irreverente O rei da vela). Não será diferente agora com Lulu, de Frank Wedekind, nova empreitada do grupo. O ponto de partida será uma leitura do texto, marcada para o dia 23 de março, dentro da programação do Festival de Curitiba. A estreia está marcada para 25 de junho no Mezanino do Sesc Copacabana.
Desta vez, a direção não ficará a cargo de Enrique Diaz, e sim de Nehle Franke. Em cena estarão quatro atores da companhia: Bel Garcia, César Augusto, Gustavo Gasparani e Marcelo Olinto. A relação dos atores com Lulu não é de hoje. Em 1996 se depararam pela primeira vez com a obra de Wedekind na casa de Susana Ribeiro, outra atriz do grupo. A partir daí, Olinto mergulhou no estudo da peça – na verdade, composta por dois textos, Espírito telúrico e A caixa de Pandora (este adaptado para o cinema em 1929, por George W. Pabst).
Peça foi muito censurada
– A peça não é maniqueísta. Lulu vive os acontecimentos. É assassinada por Jack, o estripador, por ter encontrado com ele na rua, mas não como uma forma de punição – assinala Olinto.
Uma atriz de fora deverá ser chamada para integrar o elenco e uma oficina, voltada para o espetáculo, ocorrerá entre março e abril (“A adesão aos projetos se dá a partir do desejo de cada um. Em princípio, todos são convidados a tomar parte” destaca Bel Garcia). Ano passado, os atores da companhia leram Lulu (na versão de Jean-Luc Lagarce) num ciclo de dramaturgia contemporânea no Centro Cultural Banco do Brasil. O texto foi modificado pelo próprio autor, ao longo do tempo, como confirma Nehle Franke.
– Lulu foi muito censurado. Frank Wedekind realizou diversas mudanças na luta pela possibilidade de existência do texto – diz Nehle, que conseguiu recuperar a versão original de Wedekind e contou com a ajuda do pai, livreiro na Alemanha. – É uma versão mais direta, fresca, livre das cobranças sociais.
Nehle já conhecia o texto e enumera elementos que justificam uma encenação nos dias de hoje.
– É um texto que fala sobre a afirmação da mulher dentro da sociedade, que investiga como ela cria seu espaço de vida, de liberdade. Lulu questiona as convenções sociais, não obrigatoriamente negando todas – resume a diretora, que levou a Cia. dos Atores para o 1º Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, em 2008, com Melodrama e Ensaio.Hamlet, espetáculo, aliás, que será apresentado na Romênia em 24 de abril.
Mesmo que Nehle tenha decidido trabalhar a partir do original de Wedekind, o processo será colaborativo. César Augusto chama atenção para a preocupação em se distanciar de imagens prédefinidas.
– Criou-se um padrão em relação a Lulu, como existe o de Hamlet com a caveira dizendo o monólogo do “ser ou não ser”. Mas não temos que seguir. Vamos descobrir a nossa maneira de montar a peça – anuncia César, lembrando da existência de montagens anteriores, assinadas pelos diretores Naum Alves de Souza e Marcio Meirelles.
A nova empreitada sinaliza possíveis transições no percurso da Cia. dos Atores.
– É um texto árido, como nunca montamos, seco, cruel, sem tanto humor – afirma Gustavo Gasparani.
A autoria dos atores da companhia pode ser evideciada através de diversas características: questionamento da relação tradicional entre ator e personagem, suspensão da fronteira entre realidade e ficção e determinação em produzir uma fala atual a partir de textos não necessariamente contemporâneos.
– Para nós, é improvável montar uma peça de acordo com as rubricas. No entanto, não se trata simplesmente de desconstruir o texto, mas de realizar operações como tentativas de aproximação do autor – observa Bel Garcia.
É como se os atores estabelecessem uma parceria criativa com os dramaturgos, vivos ou mortos.
- Nós mexemos tanto em O rei da vela que eu comecei a escrever – conclui Gasparani, autor dos bem-sucedidos musicais Otelo da Mangueira e Oui oui... A França é aqui! A revista do ano. – Quando dirige, Enrique Diaz assume a dramaturgia. Quando quis falar sobre o universo do melodrama sem ter um texto em vista, chamou um dramaturgo para trabalhar conosco, Filipe Miguez.
A parceria com Miguez se estendeu por outros espetáculos, casos de Cobaias de Satã e Notícias cariocas. Os atores da companhia também vêm trasitando em diversas funções. Marcelo Olinto e Drica Moraes já assinaram a cenografia de alguns espetáculos. César Augusto e Marcelo Valle assumiram a direção de determinados trabalhos, assim como Bel Garcia e Susana Ribeiro, respectivamente, nas autopeças Apropriação@, a partir do universo de Harold Pinter, e Esta propriedade está condenada, de Tennessee Williams. Não se pode esquecer a parceria com encenadores diferentes, como Gilberto Gawronski (em Meu destino é pecar), Ivan Sugahara (em Notícias cariocas) e, nas autopeças, Gerald Thomas (Bate man), Vinícius Arneiro (Os vermes) e Cristina Moura (Esta propriedade está condenada).
Características de um coletivo pulsante, devidamente documentadas no belíssimo livro Na companhia dos atores, publicado em comemoração aos 18 anos do grupo, que, neste momento, aguarda ansiosamente pelos resultados do edital da Petrobras, patrocinadora de 2006 a 2008, fundamental na viabilização das montagens e na manutenção da sede, na Lapa, e do Prêmio de Cultura do Estado do Rio, cuja cerimônia está agendada para a próxima quarta-feira, no Teatro João Caetano.
17:16 - 06/02/2010
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