Mocksen Luiz, Jornal do Brasil
SÃO PAULO - O Teatro da Vertigem se joga, mais uma vez, no abismo de territorizar a representação. Depois de ocupar uma igreja em Paraíso perdido, um hospital em O livro de Jó, um presídio desativado em Apocalipse 1.11, e o rio Tietê em BR-3, o grupo paulista ocupa o exterior do prédio do Sesc da Avenida Paulista com Kastelo. Originalmente inspirado n'O castelo de Kafka, nesta investida nas entranhas de uma corporação a cidade se desenha ao fundo como cenário perigosamente instável e gestadora de humanidades suspensas pelo provisório do trabalho.
Andaimes na fachada do edifício são os palcos móveis de onde os atores, numa complexa operação técnica, se mostram à plateia, distribuída em cadeiras de escritório, emoldurados pelos vidros dos janelões. Em três frentes, os andaimes são manipulados pelos atores no compasso das cenas, com um sobe e desce que conduz o olhar do espectador para alternância dos quadros e para a confortável sensação de “segurança”, ao contrário da experimentada pelo elenco, preso a cordas que o mantém na altura de três andares do asfalto da Paulista. Talvez essa diferença de posições delimite e reforce os papéis de atores como expositores e não como “veículos” e da assistência como receptores apaziguados, e não como integrados ao espaço abissal.
A estrutura cenográfica, e muitas vezes a do texto, instiga a sensação de inexorabilidade gravitacional. O risco da queda, um elemento físico calculado para os atores que balançam e pendem como corpos à deriva, não se transfere, como compartilhamento dramático, para o corpo daqueles que assistem aos ritos perversos de trabalho com os quais, sem dúvida, têm alguma intimidade. O vidro que separa palco e plateia estabelece transparência opaca, quadro vivo de pulsação controlada (apenas a cidade exterior miniaturizada cenograficamente), espelho sem reflexo de reações passivas (reação do público somente ao malabarismo do efeito). E é o vidro, contraditoriamente, o material que procura desembaçar a imagem exterior, trazê-la para o interior, tanto que ao entrar na sala, o zelador, um dos sete personagens, limpa cuidadosamente as vidraças para deixá-las translúcidas. E assim permitir que se acompanhe a entrada da cidade nesta cápsula teatral, simulacro de uma empresa-vitrine.
O zelador é responsável também por eliminar sujidades para que se possa ouvir, sem interferências, o ascensorista recitar texto médico sobre morte por afogamento. E arauto do desvendamento dos demais escaladores de piramide sem topo, cada um (motoboy, executiva, secretário, telefonista e arquivista) tentando permanecer agarrado à sobrevivência corporativa. O retrato da escalada por estar dentro, seguir, aceitar, permanecer, que pressupõe comportamentos regidos por leis empresarias que determinam linguagem, modo de vestir, atitudes, vida, enfim, estão capturados pelo texto de Evaldo Mocarzel em cirúrgica reprodução. Os deslocamentos do motoboy, transportado pela urgência e dirigido pela selvageria do trânsito, apreendem as desumanas relações urbanas. A executiva que congela o tempo para que o futuro seja cimentado por práticas laborais irrestritas, sucumbe ao mal gerenciamento da própria existência. Para a telefonista, o troféu de “empregada do mês” é o passaporte para a idealizada e melancólica promoção. A secretária, máquina que acelera a funcionalidade burocrática, amarra o cordel desta desatada trituradora, da qual apenas a arquivista (refração de imagem exemplar ou mensageira que devolve a platéia à loucura de seu cotidiano?) ultrapassa a parede vidro.
Nesta reportagem existencial sobre corporações com a cidade, servindo de nutriente de desejos frustrados e emoções enganosas, Evaldo Mocarzel lança ponte dramática entre a intervenção urbana e o flagrante do aniquilamento das individualidades. O texto, ao fotografar pontos identitários dos métodos empresariais e da carga que o urbano impõe, toca com maior extensão dramática o centro nervoso da narrativa, muito além da dramaturgia espacial intentada pela diretora Eliana Monteiro. Em que pese os problemas técnicos bem solucionados e a logística cênica plenamente funcional, que permitem que os atores se tornem figuras deslocadas de seu eixo, Kastelo se cristaliza no formalismo do risco e na estetização do inusitado, deixando em segundo plano a reflexão sobre suas intencionalidades.
22:38 - 13/02/2010
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