Tenho ficado quieto, sozinho. Minha filha possui o dom da invisibilidade. Mesmo dentro de uma quitinete somos dois exilados, respeitando nossos vistos de permanência. Engraçado como cada objeto aqui me remete a algum momento de antes da queda, que é como eu chamo toda a minha história antes do incidente (para quem não sabe, levei três tiros num assalto e quebrei meu braço esquerdo quando caí com o corpo por cima do braço, e agora estou com uma placa de titânio no tal braço e uma dúzia de parafusos semi-assustadores, isso se eu fosse um sujeito um pouco mais impressionável). Eu olho a capa de um LP e lembro que ouvia determinada música num momento em que estava particularmente feliz. Olho o pinguim ao lado do boneco do Mutley e me lembro que o roubei de uma festa em que estava muito bêbado. Quando acordei no dia seguinte, vi aquele pinguim olhando pra mim de maneira amistosa e pensei: "Sempre quis ter um pinguim desses. De onde ele veio?"
Vejo o flyer da peça A Noite Mais Fria do Ano e me lembro dos dias amanhecendo na Praia de Copacabana ao lado da minha amiga Paulinha Cohen e dela completamente bêbada pedindo para que algum atleta matutino acendesse o seu cigarro. Quase repito mentalmente o clichê de que era feliz e não sabia. Naquele tempo, meus dedos no teclado do laptop acompanhavam freneticamente meu raciocínio vertiginoso. Hoje minhas costas doem e me avisam que já é um outro tempo. Já é "depois da queda" e não há como voltar no tempo. Estou ilhado na minha quitinete e tudo é silencioso demais, quase um coma, quase um túmulo. Mas minha filha liga a TV e felizmente esse silêncio desgraçadamente mortal é quebrado ruidosamente. Os amigos ligam e insistem em dizer que o pior já passou. OK, então diz isso pras minhas costas que não param de doer e que não deixam que eu me concentre para escrever esse texto.
Dia desses voltei à Praça Roosevelt, o lugar da queda. Voltei à tarde para tirar algumas fotos de divulgação da nova peça, Música Para Ninar Dinossauros. Passei batido pelo local exato da queda e nem foi intencional. Simplesmente tenho outras preocupações. E é reconfortante ter outras preocupações. Me perguntam se eu não tenho raiva do sujeito que atirou em mim. Pô, é óbvio que eu tenho. Tão me tirando de Jesus Misericordioso? Sempre que eu penso nele, fico com muita raiva e desejo os sete cavaleiros do apocalipse e toda a sétima cavalaria do coronel Custer no pé dele. É que eu não fico perdendo o meu tempo pensando nesse canalha. Prefiro ocupar o meu tempo com algo mais edificante, como os métodos de tortura do personagem Dexter no seriado de TV. Podem ser úteis no futuro.
Por isso passei batido e fui cuidar do meu trabalho, ou seja, da minha vida, já que eu nunca dissociei um do outro. E agora me entrego ao trabalho, apesar da dor e de todas as limitações. Dia 18 de março, estreio no Festival de Curitiba meu novo espetáculo, totalmente gestado num momento de renascimento e dor quase constante. Entendam que insisto nisso porque, no momento em que estou escrevendo este texto, minhas costas imploram por uma massagista nórdica com mãos santificadas. Música Para Ninar Dinossauros é meu cartão de boas-vindas, uma espécie de prefácio para o restante da minha obra, ou seja, a obra que por pouco não foi.
Os médicos dizem que se eu demorasse mais dez minutos pra ancorar meu navio fantasma na Santa Casa, em São Paulo, hoje estaria bebendo meu bourbon em algum sagrado boteco do céu. Sim, porque podem ter certeza de que eu vou pra lá. Sou um cara bacana. Meia dúzia de amigos facilmente corrompíveis podem atestar isso. Então fica assim: Música Para Ninar Dinossauros é meu epitáfio que não deu certo. Apesar da linguagem grosseira que meus personagens costumam usar sem nenhuma espécie de economia, e que costuma irritar meus críticos mais pudicos, toda a cruel poesia está lá estampada na monumental melancolia dos meus personagens de meia-idade, que são de uma geração que nasceu numa espécie de limbo e que demorou demais pra colocar a cabeça pra fora do casco da tartaruga.
Convidei dois grandes amigos meus para entrarem comigo nesse balde que deve descer ao fundo do poço e não voltar: Lourenço Mutarelli e Paulo de Tharso. Difícil imaginar o espetáculo sem os dois como companheiros nessa estrada para o inferno. Convidei também três jovens e ótimos atores, que terão a ingrata tarefa de representar os nossos três personagens 20 anos antes, e mais seis lindas e ótimas atrizes, porque ninguém merece ficar uma hora e 20 minutos olhando pra fuça de seis marmanjos mal-ajambrados.
O que eu quero dizer é que, apesar de todas as dores, todas as limitações e todo o cinismo que continua incompreendido, é possível se divertir, se emocionar e ainda alimentar nossa necessária cota de raiva diária. Eu dou as boas-vindas à minha nova vida. Espero que alguém apareça sereno como numa abertura de um filme do Sergio Leone e brinde comigo. Pela espuma que tá caindo, meu copo tá cheio de cerveja. E o seu?Mário Bortolotto é dramaturgo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário